segunda-feira, 2 de março de 2015

O deserto da alma



(Texto originalmente publicado no Diário do Pará, caderno Você, na coluna Diário Cultural de 02/03/15)


Mário Duques, aparentemente, é uma figura encantadora. De fala baixa e calma, ele demonstra serenidade em todas as cenas em que aparece no documentário Uma Passagem para Mário (2014).  Mesmo diante da preparação para um procedimento de quimioterapia. Apesar de fisicamente abatido pelo câncer, suas grandes preocupações são registrar os melhores momentos em família, os diálogos com amigos e suas aventuras no mar.
Mas, Mário queria mais. Seu sonho era visitar o deserto do Atacama e fazer um filme. Ele chega a montar o roteiro com o amigo, o cineasta Eric Laurence. Em uma conversa com o médico ele pergunta, ingenuamente, quando finalmente estaria liberado para fazer a viagem. O oncologista pede cautela. Entretanto, ser cauteloso é a última coisa que voce pode pedir a um aventureiro sonhador. Por isso, passamos vários minutos acompanhando um mergulho dele nas profundezas do oceano e sua respiração dentro do aparelho de oxigênio. Alí, ele se sente vivo, feliz.
 Infelizmente, o personagem principal do filme não chega ao seu final. Ele, consciente da sua própria finitude, faz seu último registro saudando o sol e subindo as escada do condomínio onde mora, em uma metáfora mais que adequada para aquele dia. Cabe então ao diretor Eric dar continuidade ao projeto, fazendo a jornada sozinho. Experiente, o cineasta consegue tornar a filmagem subjetiva do ponto de vista pessoal: em determinado momento assumimos o papel “espiritual” de Mário, acompanhando próximo ou a distância as andanças de Eric até chegar ao deserto, seja no quarto de hotel ou em cima de um monte de pedras. Em outros, somos os olhos de Eric e “conversamos” com aqueles que estão pelo caminho da viagem.
O assunto claro, é a relação entre a brevidade da vida e a morte. Entre palavras sábias ou clichês, Eric percebe que a caminhada é, acima de tudo, espiritual. O deserto, árido e perigoso, mas ao mesmo tempo, belo e fascinante é o cenário ideal para essa angústia da alma de ambos, vivo e morto. E quando projeta as imagens do amigo nas pedras do Atacama, ele está revivendo o espírito livre de Mário. Aquele que será eterno enquanto o filme for exibido. É o destino metanarrativo e simbólico da sétima arte. Ela dá movimento e transforma em lembranças, imagens daqueles que já se foram. Eric Laurence criou um belo documentário e um testamento vivo de Mário. O bom cinema agradece.
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