Assim como
escrevi sobre Moonlight, as primeiras ideias que vieram na minha cabeça ao
assistir Para Ter Onde Ir (2018) foram as metáforas sensoriais relacionadas à
água. A veterana diretora paraense Jorane Castro usa o líquido, assim como as
estradas, como símbolos semióticos relacionados à vida e aos fluxos de
consciência. Da primeira à última cena, os conflitos iniciam e se encerram
entre rios. O que temos aqui é um road movie sobre amores líquidos, em total
concordância com as teorias de Zygmunt Bauman.
A história
se concentra na jornada de autoconhecimento de 3 personagens: Eva, uma prática
(profissional que orienta navios próximos de portos) experiente, responsável e
decidida; Melina, uma jovem estudante idealista e Keithylennye, uma dançarina
pobre de tecnomelody, que largou a noite para cuidar da filha. São mulheres com
personalidades diferentes, mas que se completam e se entendem na troca de
diálogos, olhares e gestos de empatia e carinho. Jorane sabe a
força que as mulheres do filme têm e concentra o olhar da câmera diretamente
nelas, suas individualidades e desejos.
Por isso que
a maioria das pessoas que surgem no meio da jornada, principalmente os homens,
não têm identidade, escondidos sobre luz e sombras. Há duas exceções,
estabelecendo paralelos sobre núcleos familiares, quando decidem dar uma carona
a uma desconhecida e o encontro final entre mãe e filho. Importante notar ainda
que ela não julga suas personagens. É uma decisão acertada não explicar como o
trio se conheceu, por exemplo, já que não é importante para a narrativa. Assim
como não perde tempo com ponderações morais sobre passados conflituosos ou
desejos sexuais.
“Ancorada”,
claro, por um elenco bem entrosado. Lorena Lobato (“O Cheiro do Ralo”, de
Heitor Dhalia) consegue, com poucos gestos e palavras, exalar toda a angústia
pessoal da protagonista Eva. Já Ane Oliveira transmite um ar jovial e cheio de
dúvidas para Melina no ponto certo. E tem uma grande revelação aqui:
Keila Gentil, doce e solar como Keithy. É uma personagem difícil, que poderia
cair facilmente em um clichê de pobre “barraqueira”, mas que sob a pele da
vocalista da Gang do Eletro transmite uma força contagiante, no amor da filha,
no conflito com o pai dela ou nos palcos psicodélicos das aparelhagens.
A trilha
sonora é deliciosamente brega e popular. Do som “ambiente”, com o melody
transbordando pelas frestas das casas e bares, até a calmaria de algumas notas
de violão do músico Ramon Rivera, a música se encaixa nas cenas com muita
naturalidade. A sequência da cantoria no carro com “Amor, Amor” é a minha
favorita desde já. A cineasta se cercou de gente competente do cenário cultural
paraense (90% da equipe técnica é local) e nacional, desde a supervisão musical
(de Marcel Arêde e da Gang do Eletro, com músicas de Lia Sophia, Felipe
Cordeiro e Iva Rothe), passando pela direção de arte (de Rui Santa-Helena,
profissional também do Pará) até o trabalho de veteranos da cena brasileira,
como o diretor de fotografia Beto Martins, que aproveita a bela luz natural de
Salinas para estabelecer as cores e iluminação da obra.
Por tudo
isso, temos aqui um ótimo exemplo de convergência cultural, entre o lirismo de
uma boa história, os cenários urbanos e naturais do Estado, e a música
multifacetada da cena local. Para Ter Onde Ir estreia nos cinemas na próxima
quinta-feira, dia 10 de maio, e tem produção da Cabocla Filmes, REC e O2 Play. Prestigiem
o cinema paraense.
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