segunda-feira, 7 de maio de 2018

Na onda do movimento



Assim como escrevi sobre Moonlight, as primeiras ideias que vieram na minha cabeça ao assistir Para Ter Onde Ir (2018) foram as metáforas sensoriais relacionadas à água. A veterana diretora paraense Jorane Castro usa o líquido, assim como as estradas, como símbolos semióticos relacionados à vida e aos fluxos de consciência. Da primeira à última cena, os conflitos iniciam e se encerram entre rios. O que temos aqui é um road movie sobre amores líquidos, em total concordância com as teorias de Zygmunt Bauman.
A história se concentra na jornada de autoconhecimento de 3 personagens: Eva, uma prática (profissional que orienta navios próximos de portos) experiente, responsável e decidida; Melina, uma jovem estudante idealista e Keithylennye, uma dançarina pobre de tecnomelody, que largou a noite para cuidar da filha. São mulheres com personalidades diferentes, mas que se completam e se entendem na troca de diálogos, olhares e gestos de empatia e carinho.   Jorane sabe a força que as mulheres do filme têm e concentra o olhar da câmera diretamente nelas, suas individualidades e desejos.

Por isso que a maioria das pessoas que surgem no meio da jornada, principalmente os homens, não têm identidade, escondidos sobre luz e sombras. Há duas exceções, estabelecendo paralelos sobre núcleos familiares, quando decidem dar uma carona a uma desconhecida e o encontro final entre mãe e filho. Importante notar ainda que ela não julga suas personagens. É uma decisão acertada não explicar como o trio se conheceu, por exemplo, já que não é importante para a narrativa. Assim como não perde tempo com ponderações morais sobre passados conflituosos ou desejos sexuais.

“Ancorada”, claro, por um elenco bem entrosado. Lorena Lobato (“O Cheiro do Ralo”, de Heitor Dhalia) consegue, com poucos gestos e palavras, exalar toda a angústia pessoal da protagonista Eva. Já Ane Oliveira transmite um ar jovial e cheio de dúvidas para Melina no ponto certo.  E tem uma grande revelação aqui: Keila Gentil, doce e solar como Keithy. É uma personagem difícil, que poderia cair facilmente em um clichê de pobre “barraqueira”, mas que sob a pele da vocalista da Gang do Eletro transmite uma força contagiante, no amor da filha, no conflito com o pai dela ou nos palcos psicodélicos das aparelhagens.  

A trilha sonora é deliciosamente brega e popular. Do som “ambiente”, com o melody transbordando pelas frestas das casas e bares, até a calmaria de algumas notas de violão do músico Ramon Rivera, a música se encaixa nas cenas com muita naturalidade. A sequência da cantoria no carro com “Amor, Amor” é a minha favorita desde já. A cineasta se cercou de gente competente do cenário cultural paraense (90% da equipe técnica é local) e nacional, desde a supervisão musical (de Marcel Arêde e da Gang do Eletro, com músicas de Lia Sophia, Felipe Cordeiro e Iva Rothe), passando pela direção de arte (de Rui Santa-Helena, profissional também do Pará) até o trabalho de veteranos da cena brasileira, como o diretor de fotografia Beto Martins, que aproveita a bela luz natural de Salinas para estabelecer as cores e iluminação da obra.

Por tudo isso, temos aqui um ótimo exemplo de convergência cultural, entre o lirismo de uma boa história, os cenários urbanos e naturais do Estado, e a música multifacetada da cena local. Para Ter Onde Ir estreia nos cinemas na próxima quinta-feira, dia 10 de maio, e tem produção da Cabocla Filmes, REC e O2 Play. Prestigiem o cinema paraense.

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