segunda-feira, 27 de março de 2017

Invisibilidade global






“Quando você perde a autoestima, você perde tudo”. A frase, dita em determinado momento de Eu, Daniel Blake (2016), é importante por resumir toda a estrutura narrativa do filme de Ken Loach. Confesso que não conhecia nada da obra do diretor britânico, mas fica a sensação de que, para ele, a mensagem é mais forte que a estética. E o roteiro de Paul Laverty, parceiro da maioria das obras de Loach, se impõe ao desnudar a relação capital e assistência social, através de sua burocratização e monetização excessiva, como se o pobre fosse um estorvo, que gera “custos” para os governos.
Daniel Blake (Dave Johns, em atuação melancólica) é um senhor rígido e mal humorado, mas de bom coração, que trabalha como carpinteiro há 40 anos (uma clara analogia a José, pai bíblico de Jesus). Até que um dia sofre um problema cardíaco que lhe impede de trabalhar. Ele começa uma verdadeira jornada para conseguir que o Estado lhe pague o seguro desemprego e a aposentadoria, enquanto faz amizade com uma mãe solteira em situação de miséria, Katie (Hayley Squires, uma revelação). Não, Blake não vive no Brasil, mas na Inglaterra atual.  
Afinal, a extrema pobreza não é exclusividade dos países do Terceiro Mundo. Tanto os EUA, quanto os países europeus, possuem uma massa de pessoas em extrema vulnerabilidade social e não sabem o que fazer com ela. Falta sensibilidade de todos os setores no trato à população mais carente. Essa é uma verdade universal.  A dificuldade do personagem em conseguir uma única ligação telefônica para o serviço público, que ainda é paga, transforma pequenas atitudes cotidianas em um drama surreal.
Em tempos onde o valor do capital é maior que o valor humano, Loach constrói um tratado sobre as relações humanas e o mundo atual. Ele não investe em longos planos ou enquadramentos precisos, mas consegue transpor todo o sofrimento daquelas pessoas diante de uma cidade que funciona como organismo vivo, e como esta trata seus habitantes mais necessitados como anticorpos incômodos.
E Eu, Daniel Blake mostra que, ao invés de encarar o problema de frente, os governos pioram as coisas, implementando sistemas onde se orgulham de informatizar os processos, mas ainda enviam cartas para a casa das pessoas para tornar tudo mais demorado. Que põem pessoas com vozes treinadas e aborrecedoras para “entrevistar” requerentes de benefícios. E não percebem como soa ridículo tentar usar linguagem corporativa, com seus jargões clichês, expressões de autoajuda e números superlativos, diante de uma plateia cuja maior preocupação é estar com todas as contas pagas e ter comida na mesa até o final do mês.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Pronto para nadar





Moonlight (2016) é um filme de sensações físicas e emocionais. É a mostra perfeita que o cinema é fascinante por transformar em lirismo absoluto os conflitos imagéticos e dialéticos sobre as contradições humanas. Uma obra crua, ressignificada em uma poética visual, mas ao mesmo tempo movida por sons, como a música, o barulho do mar e os silêncios reveladores ou constrangedores.
Essa construção narrativa é feita pelo olhar de um menino introvertido e frágil chamado Chiron. Ele é pobre, filho de uma drogada (Naomi Harris, em uma atuação maravilhosa) e ainda está descobrindo a própria sexualidade, reprimida pelas piadas e xingamentos de outros estudantes. Ele acaba encontrando no traficante Juan (Mahershala Ali, em uma pequena, mas marcante participação vencedora do Oscar), uma bússola moral, apesar de falha e autodestrutiva. Além do criminoso, ele encontra apoio apenas em Teresa (a cantora Janelle Monae, uma revelação) e no colega de escola Kevin, em quem descobre a atração física.
O diretor Barry Jenkins sabe o poder do roteiro quem tem em mãos. A começar pelo bom trabalho de elenco, principalmente do personagem principal, em suas 3 fases, vividas pelos ótimos Trevante Rhodes, Ashton Sanders e Alex Hibbert. É impressionante como atores de idades diferentes conseguem se parecer no olhar, na fala pausada e nos gestos contidos.
Jenkins também investe em pequenos elementos para mostrar a transição física e moral de Chiron. O mar é o principal deles. É através da água que o personagem se sente livre, transformado e, como diria seu velho amigo, está “pronto para nadar”. Outros símbolos também representam saídas morais. Como portas e janelas, que são frequentemente abertas e fechadas em várias cenas. Assim, o diretor não se furta de explorar todas as nuances necessárias para contar a trama complicada de um jovem criminoso gay, negro e pobre e não apela, em nenhum momento, para maniqueísmos baratos.
No fim das contas, apesar de sabermos que o Oscar é um prêmio essencialmente comercial, cercado por lobistas e empresários, e que a academia está tentando se redimir das críticas sobre exclusão étnica nas suas premiações, tivemos um ano onde a estatueta dourada ficou em ótimas mãos. E que bom que o envelope lido no fim da errática cerimônia
estava errado.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Velhos amigos




Era o ano de 2000, quando entrei no cinema empolgado, então com 19 anos, para ver a personificação dos heróis dos quadrinhos que eu gostava e que ganharam forma em X-Men, o Filme. O diretor Brian Singer vinha prestigiado com os ótimos Os Suspeitos e O Aprendiz. O elenco do filme tinha nomes já famosos, como Hale Berry e veteranos do naipe de Patrick Stewart e Ian Mckellen. Mas o papel de maior curiosidade dos fãs dos quadrinhos foi reservado para um ator até então bem desconhecido, chamado Hugh Jackman: o raivoso e complexo Wolverine.
Dali em diante, Jackman virou um astro e repetiu o personagem em outras 7 produções, até decidir pendurar as garras em Logan (2017), derradeira aventura do “carcaju”, dessa vez comandada pelo experiente James Mangold (dos ótimos Cop Land, Identidade, Johnny &June e Os Indomáveis). E, definitivamente, foi uma despedida honesta e impactante. A obra redime as falhas grotescas da 20 Century Fox, como os terríveis X-Men Origens – Wolverine e X-Men Apocalipse.
Jackman impõe sua presença em cena desde o primeiro segundo em que aparece, com um rosto duro e envelhecido e o corpo sentindo o peso da idade. Ao seu lado, o mentor Charles Xavier nos lembra de que mesmo mutantes poderosos sofrem com o desgaste do tempo, em uma atuação cheia de nuances e beleza de Stewart.
Depois de tanto tempo, os dois estão muito a vontade nos personagens. Dafne Kenn, que faz a pequena, mas perigosa X-23 é uma revelação. Em seu primeiro papel na tela grande, a menina transmite toda a fúria mutante junto aos trejeitos e ingenuidades típicas da infância, afinal, mesmo sendo uma máquina de matar, ainda é uma criança.
Apesar de não usar flashbacks, deixando as dores do passado subentendidas, o roteiro acaba apelando para muletas narrativas para explicar melhor a história, como uma gravação de celular estranhamente bem feita e diálogos expositivos em excesso. Mesmo assim, Mangold segura a direção com firmeza e cria rimas visuais elegantes, como a metalinguagem de temas presente no filme Os Brutos Também Amam, que Xavier e X-23 assistem na televisão do hotel, além da aparência de um clone que estabelece conexão com o primeiro filme dos X-Men. A fotografia é linda e as paisagens reforçam o ambiente meio western alcançado pela narrativa.
Além, claro de lembrar direta ou indiretamente outros filmes onde personagens duros se envolvem emocionalmente com crianças que precisam proteger ao longo de uma caminhada, como O Profissional e A Estrada. Logan é menos um filme de herói e mais um road movie dramático dos bons, do nível de Mad Max – Estrada da Fúria, e, coincidentemente, deve ganhar uma versão em preto e branco em breve.