segunda-feira, 30 de março de 2015

O cineasta da desesperança






 (Texto originalmente publicado na coluna Diário Cultural do Caderno Você, jornal Diário do Pará, edição de 30/03/2015)

Estreou essa semana em circuito reduzido no Rio de Janeiro e São Paulo (Em Belém, esperamos que chegue logo), o novo filme de Paul Thomas Anderson, Vício Inerente. É mais uma parceria do diretor com Joaquin Phoenix, depois do espetacular O Mestre, de 2012.  Pelo trailer dá pra imaginar que P.T. Anderson (não confundir com outro cineasta ruim chamado Paul W. Anderson – que cometeu todos os Resident Evil ) criou uma viagem lisérgica absurda pelo universo da utopia hippie dos anos de 1960.
Seu primeiro filme foi o obscuro Jogada de Risco (1996), mas o reconhecido internacional veio com Boogie Nights – Prazer sem Limites (1997), que arrebatou três oscars, incluindo melhor roteiro original para Anderson. E foi ali que ele deixou claro suas intenções: derrubar o sonho americano, em todas as épocas e meios. Da indústria pornográfica às riquezas do petróleo (Sangue Negro, 2007), passando pelo poder espiritual (O Mestre) ou do amor fantasiado (Embriagado de Amor, 2002). Em Boogie Nights, as metáforas que cercam a ostentação do dinheiro e do sexo são claras:  Não há moral possível diante de seres tão afeitos aos instintos animalescos da violência, do dinheiro e do sexo.
Na visão de Anderson, a linha que separa o poder da desgraça é tão tênue quanto a morte. O que sai da boca de um líder espiritual ou de um guru de autoajuda não se difere pelo simples fato que é destinada a públicos esvaziados de amor próprio. O diretor talvez seja o filho mais aplicado daquela geração da década de 1970, que transformou o pessimismo social americano pós-vietnã e a crise da indústria cinematográfica em um novo movimento apoiado na realidade cruel e desencantada, como Martin Scorsese, Robert Altman, Hal Ashby, Francis Ford Coppola e Sam Peckimpah.
Isso, claro, sem abrir mão de uma poética visual própria, com planos médios e longas sequências. Em Magnólia, como um legítimo Altman de Nashville, o autor cria várias pequenas histórias de personagens em uma narrativa maior, com toques bíblicos e uma trilha poderosa de Aimee Mann. A cena em que todos os personagens cantam Wise Up é uma das mais belas já criadas para o cinema. E temos, claro, a inesquecível e debatida chuva de sapos, que serve como um anticlímax perfeito para a trama. Anderson é assim. Consegue extrair beleza do prosaico e da desesperança. É meu cineasta favorito dos anos de 1990 pra cá. 


Relatos Selvagens
E finalmente, o aclamado longa argentino “Relatos Selvagens” chega à capital paraense. O filme de Damián Szifron, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, estreia dia 01 de abril, no Cine Líbero Luxardo. As sessões ocorrem de quarta a domingo, nos horários de 19h (aos domingos, tem sessões ainda às 17h), com ingressos a R$ 8,00 e entrada franca para estudantes. Falarei sobre o longa na próxima coluna. 

Aimee Mann - Wise Up: 

https://www.youtube.com/watch?v=aNmKghTvj0E

segunda-feira, 23 de março de 2015

A ultrapassada polêmica do beijo gay






(Texto originalmente publicado na coluna Diário Cultural, do caderno Você do Diário do Pará, edição de 23/03/2015)

A principal polêmica da semana na TV brasileira foi o beijo lésbico na novela Babilônia da rede Globo, protagonizado por duas grandes atrizes veteranas: Fernanda Montenegro e Nathália Timberg. Foi um beijo simples, carinhoso, mas o suficiente para levantar a ira de alguns e fazer a alegria de quem frequenta as mídias sociais e que acredita no amor livre.
            Bem, quando se trata de meio cultural, esse é um burburinho que já nasce ultrapassado. Isso porque em 1927, o primeiro ganhador do Oscar de Melhor Filme, Asas, trazia um beijo na boca entre os protagonistas. Era uma despedida espiritual bela e tocante, em plena década de 1920. No Brasil, em 1980, Tarcisio Meira também realiza o último desejo de Ney Latorraca em Um Beijo no Asfalto, adaptação da obra de Nelson Rodrigues, que já tinha desnudado toda a hipocrisia de uma sociedade conservadora e que julga as pessoas acima de suas qualidades.
            E há dezenas de outros casos na sétima arte que provam que as produções já encaram esse dilema como ultrapassado. Antonio Banderas faz sexo com outros atores no polêmico A Lei do Desejo, de Pedro Almodovar. Garotas Selvagens tem uma troca de saliva de tirar o fôlego entre Neve Campbell e Denise Richards. Naomi Watts e Laura Harring também se curtem mutuamente em A Cidade dos Sonhos, dirigido por David Linch. Leonardo Di Caprio e David Thewlis compartilhavam poemas e a cama na adaptação do romance entre os poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud em Eclipse de Uma Paixão.
            A televisão americana também deu vários passos adiante nessa questão. A HBO tinha personagens LGBTs em praticamente todas as suas produções, desde The Wire, Sopranos, OZ e mais recente criou uma série específica sobre o mundo Gay, Looking. A Warner também produziu The L World, que como o nome diz, explora o convívio diário de mulheres que gostam de outras mulheres.  Há algumas semanas, outros dois seriados também deixaram os conservadores ouriçados: The Fosters investiu em uma trama com adolescentes gays trocando carícias e o megassucesso The Walking Dead incluiu entre seus personagens dois homossexuais.
            Mas, quando se trata de novelas, a Globo também não foi pioneira como muitos imaginam. Na verdade, a primeira cena a conter troca de carinho físico entre gays foi na novela Amor e Revolução, do SBT, exibida em 2011, encenads pelas atrizes Giselle Tigre e Luciana Vendramini. A trama era ruim e a produção amadora, mas Silvio Santos incentivou gestos parecidos, que foi seguido pela final de Amor à Vida, com Mateus Solano e Thiago Fragoso.
            Como vocês podem ver, o meio audiovisual já se libertou há muito tempo desses dogmas erráticos sobre gênero e sexualidade na hora de contar suas histórias. Libertemo-nos todos então.  

segunda-feira, 16 de março de 2015

Quando se esgotam as reservas morais




(Texto originalmente publicado na coluna Diário Cultural, do caderno Você do Diário do Pará de 16/03/15) 

Francis Underwood chegou ao topo e realizou o sonho de ser presidente dos EUA. Mas, como já era esperado, finalmente o castelo de cartas começa a desmoronar.  Agora é ladeira abaixo. Mas, quando se trata do nosso anti-herói atual favorito, é preciso se agarrar na ponta do desfiladeiro até onde der, para justificar os “esforços” utilizados no intuito de estar ali, incluindo chantagens, manipulações e assassinatos.
E como uma boa raposa política, ele usará de todos os artifícios possíveis para amplificar o jogo de poder, mentiras e sedução. E é ai que a série melhora de maneira significativa. A segunda temporada foi muito regular por se apoiar em coadjuvantes sem expressão e por reviravoltas meio forçadas. Já a terceira, que a Netflix disponibilizou agora, é bem mais amarrada em seu roteiro e na construção dos personagens.
Felizmente, um dos pontos fortes de HoC são seus personagens. Todos eles precisam se desfazer de suas reservas morais se quiserem sobreviver politica e socialmente. E o enredo utiliza todas as nuances possíveis para construí-los. Nesse sentido, quem se destaca aqui é o fiel assessor dos Underwoods, Doug Stamper. Da experiência de quase morte até aqui, ele precisa recuperar sua própria confiança, abalada pelas limitações físicas, e a do presidente. Mas, enfrentar as dores morais pode ser muito pior que as do corpo. Há uma cena nos primeiros episódios, envolvendo ossos quebrados que é bem representativa.
Entretanto, o maior trunfo dos produtores está no casal principal, Claire e Frank. E eles tanto sabem disso que deixam o caminho livre para Kevin Spacey e Robin Wright brilharem. Aqui, diante da movimentação do poder, o amor pode cede lugar à desconfiança e solidão. O certo é que após a Casa Branca, este casamento não será mais o mesmo. A fotografia e o design de produção são essenciais para mostrar esse distanciamento. Sempre fotografada em tons escuros, assim como as roupas e os objetos, a morada oficial da presidência se torna um lugar opressor e claustrofóbico. Além da posição dos quartos e da mesa de jantar acentuar esse desequilibro afetivo (o que remete diretamente à brilhante cena de Cidadão Kane, onde a crise do casal é mostrada pela distância cada vez maior entre eles na montagem, quando estão juntos sentados à mesa).
Os bastidores da política, com suas negociatas e crises, incluindo aquelas diplomáticas, são mais bem trabalhadas que a temporada anterior. Todos os atores políticos têm seu destaque, e tudo que acontece na reta final tem sua razão de ser. Enfim, prevejo que House of Cards vai reencontrar seu prestígio nas premiações e junto ao público e ficaremos com saudade de Frank nos confrontando diretamente nos olhos, quebrando a quarta parede. Afinal, como já disse, somos cúmplices de suas maquinações. Tomara que a quarta temporada, se houver, não demore muito.

Aqui, a cena de Cidadão Kane:

segunda-feira, 9 de março de 2015

Birdman ou a inesperada virtude de vários oscars

(Texto Originalmente publicado no Diário do Pará, coluna Diário Cultural do caderno Você, edição de 09/03/2015)

Birdman é um deboche. Um pastiche intencional sobre a construção artística. Ou, como diria a crítica de arte do jornal no filme, é a destruição do conceito puro que moveria a arte e sua criação. Uma ode à perda da aura de Walter Benjamin. Ou uma elegia ao fim desta diante da indústria cultural, vai saber.
O certo é que o novo filme de Alejandro González Iñárritu está – bastante - interessado em deixar o espectador de cuecas diante da tela. Pronto para se atirar do prédio e sair voando como o Homem-Pássaro. E cria uma obra intensa. O diretor mira em Festim Diabólico e acerta nas próprias virtudes. O único plano sequência falseado se transmuta na passagem fluida de tempo e na mise-en-scène pelas quais os personagens confortavelmente se distribuem. Tudo é pensado cuidadosamente, da platéia de homens brancos e idosos prevista pelas palavras duras da filha, Sam (Emma Stone, a um passo da atuação fora do tom) ao curativo imitando a máscara do herói.
A fotografia de Emmanuel Lubezki, como sempre, é magnifíca. E a trilha sonora de Antonio Sánchez praticamente é composta por batidas de bateria, que alterna a percussão entre calma e intensa, como as batidas do coração do nosso protagonista, o ator decadente Reggan Thomson. Um ex-astro de cinema escondido agora em um camarim fétido de um teatro decadente.
O elenco também é ótimo. Naomi Watts é a artista bipolar do teatro perfeita. Edward Norton e Michael Keaton exibem facetas que cairiam direitinho nas suas próprias personas: o primeiro tem fama de brigão e egocêntrico. O segundo viveu seu auge até a década de 1990 pós-Bettlejuice e pré-Batman  e depois teve que se contentar em ser coadjuvante da nova versão do Se Meu Fusca Falasse.
Há também metáforas quadrinísticas a parte.  Riggan pode mover objetos com a mente ou é apenas mais uma alegoria criada por ele para sustentar seu próprio ego?. A dúvida permeia todo o filme e permanece até o fim. Ele levita na sua própria mente e esquece de pagar o táxi. Ou deixa passar sua fama de louco. Ou seria louco pela fama?. Tudo que ele não quer é morrer como Farrah Fawcett, eclipsada pelo fim – no mesmo dia - de outro astro, aquele do Moonwalker. Birdman é cinema, é teatro, é música, é quadrinhos. É amor e poesia de Raymond Carver. Seria a virtude da ignorância e a agonia da perfeição. Mereceu cada estatueta dourada (apesar de Boyhood, que mora no meu coração).
Mas que isso, é seu amigo imaginário mandando você ir à qualquer lugar para perto de onde você deveria estar. O meu mandou eu assistir o filme de novo. Acho que vou obedecer antes de sair voando por aí.

Quadrinhos no Pará
E falando em quadriinhos, o projeto "Sessão Daqui", do Sesc Boulevard em parceria com a Associação Paraense de Jovens Críticos de Cinema (APJCC), exibirá o documentário “VHQ – Uma breve história dos quadrinhos paraenses”, de Vince Souza que, como o próprio título informa, trata da batalha dos apaixonados pela nona arte no Estado. É um registro inédito e imperdível da união das duas artes sequenciadas em terras amazônicas. A exibição será no dia
18 de março às 18h, no Sesc Boulevard da avenida Castilho França. Prestigiem.

segunda-feira, 2 de março de 2015

O deserto da alma



(Texto originalmente publicado no Diário do Pará, caderno Você, na coluna Diário Cultural de 02/03/15)


Mário Duques, aparentemente, é uma figura encantadora. De fala baixa e calma, ele demonstra serenidade em todas as cenas em que aparece no documentário Uma Passagem para Mário (2014).  Mesmo diante da preparação para um procedimento de quimioterapia. Apesar de fisicamente abatido pelo câncer, suas grandes preocupações são registrar os melhores momentos em família, os diálogos com amigos e suas aventuras no mar.
Mas, Mário queria mais. Seu sonho era visitar o deserto do Atacama e fazer um filme. Ele chega a montar o roteiro com o amigo, o cineasta Eric Laurence. Em uma conversa com o médico ele pergunta, ingenuamente, quando finalmente estaria liberado para fazer a viagem. O oncologista pede cautela. Entretanto, ser cauteloso é a última coisa que voce pode pedir a um aventureiro sonhador. Por isso, passamos vários minutos acompanhando um mergulho dele nas profundezas do oceano e sua respiração dentro do aparelho de oxigênio. Alí, ele se sente vivo, feliz.
 Infelizmente, o personagem principal do filme não chega ao seu final. Ele, consciente da sua própria finitude, faz seu último registro saudando o sol e subindo as escada do condomínio onde mora, em uma metáfora mais que adequada para aquele dia. Cabe então ao diretor Eric dar continuidade ao projeto, fazendo a jornada sozinho. Experiente, o cineasta consegue tornar a filmagem subjetiva do ponto de vista pessoal: em determinado momento assumimos o papel “espiritual” de Mário, acompanhando próximo ou a distância as andanças de Eric até chegar ao deserto, seja no quarto de hotel ou em cima de um monte de pedras. Em outros, somos os olhos de Eric e “conversamos” com aqueles que estão pelo caminho da viagem.
O assunto claro, é a relação entre a brevidade da vida e a morte. Entre palavras sábias ou clichês, Eric percebe que a caminhada é, acima de tudo, espiritual. O deserto, árido e perigoso, mas ao mesmo tempo, belo e fascinante é o cenário ideal para essa angústia da alma de ambos, vivo e morto. E quando projeta as imagens do amigo nas pedras do Atacama, ele está revivendo o espírito livre de Mário. Aquele que será eterno enquanto o filme for exibido. É o destino metanarrativo e simbólico da sétima arte. Ela dá movimento e transforma em lembranças, imagens daqueles que já se foram. Eric Laurence criou um belo documentário e um testamento vivo de Mário. O bom cinema agradece.
https://ssl.gstatic.com/ui/v1/icons/mail/images/cleardot.gif