segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Entre segundas e terceiras chances




Pensem em quanta coisa mudou na vida de vocês e do país em 20 anos. Pois esse foi o tempo que “Chatô – O Rei do Brasil” demorou a ver a luz do dia, ou melhor do escurinho da sala grande. Lançado nos cinemas em novembro do ano passado em salas restritas, o filme não atraiu grande público. Mas agora, a história ganha uma nova chance com a disponibilização no Netflix. E - surpresa! – o filme é bom.
A priori, dois pensamentos invadem minha cabeça: Se tivesse sido lançado com o planejamento da época, seria um clássico instantâneo. Acabou perdendo o posto de pioneiro na comédia histórica nacional para “Carlota Joaquina”, lançado em 1995. Outra percepção: o tempo é cruel com todo mundo, menos com a Letícia Sabatella. É curioso notar como o elenco principal envelheceu nessas décadas. Alguns, como José Lewgoy e Walmor Chagas, morreram antes do lançamento da película.
O maior trunfo de Guilherme Fontes é também seu calcanhar de aquiles. O roteiro é ousado e, por isso mesmo, bem difícil de ser filmado. Não é a toa que o dinheiro acabou antes da pós-produção, o que trouxe problemas jurídicos entre o diretor e o Governo, que queria o dinheiro investido de volta. Ao situar a ação em vários locais e épocas diferentes, ele enfrentou um desafio gigante na cenografia e figurino. O filme captou na época R$ 8 milhões, o que hoje daria R$ 66 milhões. Uma quantia razoável para um filme americano, mas uma fortuna em se tratando do cinema nacional.
No final das contas, os acertos são maiores que os problemas. Guardadas as devidas proporções, a produção me lembrou o perrengue que Francis Coppola enfrentou para filmar “Apocalipse Now” (o processo, inclusive, virou documentário) e também a luta de Terry Gilliam para que sua visão de “Dom Quixote” ganhe vida (esperamos até hoje por isso).
A narrativa passeia entre a realidade e o delírio, entre o surrealismo e a sátira pura. Uma chanchada nacional com toques de Woody Allen, Wes Anderson, Joel e Ethan Coen, e até de Alejandro Jodorowski. Se fosse um pouco mais enxuto e simples, seria o nosso “Amarcord”, a obra-prima de Federico Fellini. É uma viagem alucinógena por um Brasil em urbanização e pós-colonial, apoiado por uma biografia rica em detalhes e mesmo assim desconstruída totalmente (não li o livro de Fernando Morais para comparar, mas já me interessei).
Mas, infelizmente, há muitos problemas também. As atuações são bem canastronas, à exceção de Marco Ricca, excelente como o personagem título, o magnata das comunicações Assis Chateaubriand. A história do empresário é cheia de nuances e passagens surpreendentes, mas o elenco não acompanha o ritmo e a linguagem impostos pelo diretor. Paulo Betti, por exemplo, parece completamente deslocado como Getúlio Vargas e a já citada Letícia Sabatella faz pouco mais que uma figuração.
Acho que pelas falhas de planejamento do material filmado, a montagem parece ora acelerada, ora arrastada. Creio que Fontes teve que se virar com o material que tinha nas mãos. O brasileiro não é um Orson Welles que destrinchou a vida de um magnata americano com ironia e perversidade em “Cidadão Kane”, mas o roteiro dele possuia a excentricidade necessária para render um bom filme. É uma pena que todo o imbróglio da produção tenha praticamente sepultado a carreira que o ator/cineasta. Teria muito futuro.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Esta não é uma linda história de amor


Ryan Reynolds deve estar rindo com as paredes. Afinal, ele batalhou por 10 anos para adaptar Deadpool dos quadrinhos para o cinema. O temor da Fox (que detêm os direitos da maioria dos mutantes da Marvel na tela grande) era até justificado. Nas HQs, o assassino tagarela é um poço de histórias politicamente incorretas. Mutilações, palavrões, mortes bizarras e muitas, muitas referências à cultura pop em geral. O ator teve seu sonho quase realizado em X-Men Origens - Wolverine, mas o filme era um desastre completo e Deadpool virou um personagem patético ali.
Tudo mudou em 2014, quando testes de filmagens vazaram na internet e fizeram sucesso nas redes sociais. Isso acendeu o sinal verde para os executivos de estúdio. Surpreendentemente, 2 anos depois, o herói é um sucesso de público e crítica. Um alento para a produtora, que estava amargando um prejuízo enorme com o horrível Quarteto Fantástico. No fim das contas, Reynolds estava certo. Ele É Deadpool. Com o tipo físico adequado e um timing próprio para o humor, ele domina a tela, mesmo quando está de máscara. E como principal defensor da ideia, o galã não faz concessões no palavreado sujo e nem com a própria persona sexual.   
Morena Baccarin, linda e desinibida, ameaça o posto de musas dos nerds de Scarlet Johansson e Zoe Saldaña.  Por outro lado, os vilões de Ed Skrein e Gina Carano são meio decepcionantes, não indo além da cara de mau e das motivações clichês do gênero.  Mas o roteiro de Rhett Reese e Paul Wernick (dupla responsável pelo ótimo Zumbilândia) tem muitos méritos: é cínico e debochado o suficiente para tirar sarro com o diretor, os produtores e até com o ator principal (as referências a Wolverine e Lanterna Verde são muito divertidas).
Aliás, todo o universo dos mutantes é motivo de chacota. Deadpool atira (literalmente) para todos os lados. Sobra para o Capitão América, Demolidor e, principalmente para os X-Men, que o filme lembra toda hora que este passa no mesmo universo daqueles heróis. Por isso, a película tem a presença importante de um ilustre representante da escola do Professor Xavier no enredo.  As gags que remetem a outros filmes estão por toda parte: Monty Python, Star Wars, O Senhor dos Anéis. Se você gosta de filmes dos anos de 1980, fique até o final dos créditos. Há uma pérola ali referente a um clássico da Sessão da Tarde.  
Reese e Wernick investem ainda na constante quebra da quarta parede. Além de conversar diversas vezes diretamente com o público , o personagem brinca com as lentes e até movimenta a câmera com as mãos para que os espectadores “evitem” uma cena violenta. Falando nisso, violência é que não falta. O que seria um empecilho para as bilheterias, parece um dos trunfos de Deadpool. É o primeiro sucesso da Marvel que não é indicado também para os adolescentes (Justiceiro e Motoqueiro Fantasma não foram tão amados assim). E isso pode mudar muita coisa daqui para frente nas adaptações de quadrinhos. Guerra Civil vem ai. E a DC investe pesado em tramas mais soturnas com Batman vs Superman e Esquadrão Suicida. A conferir.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Os Grilhões do Passado


Você sabe que Os 8 Odiados é um filme de Quentin Tarantino quando o cineasta consegue colocar no mesmo “balaio” visual referências a filmes como Meu Ódio Será Tua Herança e O Enigma do Outro Mundo, além de uma obra clássica da literatura como O Assassinato no Expresso Oriente. Ou seja, a película tem elementos de westerns, terror e suspense, ao mesmo tempo em que não é nenhum dos 3 gêneros. Parece confuso? A intenção, claramente, é essa.
O ponto de partida é a história de 9 desconhecidos (isso mesmo, são 9 e não 8 personagens. Trata-se de mais uma ironia tarantinesca, já no título da obra: é o seu 8º filme e remete também a 8 ½, de Federico Fellini) que ficam presos em uma cabana enquanto aguardam a passagem de uma nevasca. A tensão é crescente e as intenções são desnudadas aos poucos. Esse “nada é o que parece” é reforçado pela atmosfera pesada e melancólica da trilha do mestre Ennio Morricone e pelo design de produção fantástico, que transforma o, quase, único cenário do filme em uma prisão natural ora claustrofóbica, ora estranhamente acolhedora.
Os 8 Odiados também é puro teatro, perfeito para que os atores brilhem. Cada um a seu tempo. Por outro lado, há Samuel L. Jackson. É dele a maior atenção da câmera, sempre bem posicionada, de Tarantino. Um personagem bem blaxplotation (produções negras da década de 1970) perdido em um faroeste macarrônico. Ele também é quem carrega o Mcguffin (elemento simbólico que move a narrativa, como a mala dourada de Pulp Fiction) da vez. A suposta carta de Abrahan Lincoln ao personagem Major Marquis  não é aleatória. E por estar nas mãos de um negro causa estranhamento e conflitos, além de ter um papel determinantemente simbólico no ato final do filme.
A “cabana do Terror” é o microcosmo perfeito da democracia americana. Aqui temos, de novo, uma representação da genialidade da película. Ao juntar vários extratos sociais distribuídos entre personagens diferentes, Quentin Tarantino cria um pequeno embate entre a política representativa e aquela que privilegia determinados grupos sociais. Mexicanos, negros, mulheres, brancos, racistas, europeus colonizadores.  Está tudo ali. Uma aula da história americana se você prestar atenção nas entrelinhas.
A propensão do filme ao gore e a histeria não é por acaso. O autor atira nas referências à Don Siegel e Sergio Leone, e também acerta em Dario Argento e Lucio Fulci. Os embates de sangue são desenhados com uma costura narrativa impressionante. E diálogos afiadíssimos, como de habitual.  Tarantino não tem pressa em criar um clímax para a história, se é que ele existe. E tome flashbacks, tensões não-realizadas e variações entre closes e planos abertos. Referências sempre presentes em um autor que não tem medo de se reinventar mantendo seu avatar no devido status quo. Ao manipular seus conceitos de ética e violência, Tarantino é tão odiado quanto seus personagens. Mas pode ser amado na mesma proporção, graças ao seu cinismo por trás das câmeras. E nesse exemplar temos um diretor transformando o barulho, provocado pelos pesados grilhões que o prendem ao seu passado no cinema, em música.