Brandon e Phillip devem ter tido pais muito ausentes, pois a eles cabe com perfeição o ditado "Está pedindo para apanhar e não tem quem dê". Mimados, parecem estar em uma eterna busca por atenção. Um comportamento aceitável na infância, mas que, na fase adulta,indica apenas egoísmo e arrogância. Se julgam superiores e querem que o mundo saiba disso e, claro, concordem com o seu ponto de vista. Para "se mostrar", arquitetam um assassinato e fazem uma festa para a vítima, com direito a convidados. Escondem o cadáver num baú, no meio da sala. Servem o jantar em cima dele. Não queriam ser pegos. Era apenas mais um teste para a sua suposta genialidade. Mas, afinal, de que adiantaria realizar o crime perfeito se ninguém ficasse sabendo, nem lhes dessem o devido crédito?
Esse sempre foi o mal dos vilões. Não seguram a sua língua. Mais de dez anos antes dos filmes de James Bond eternizarem essa figura caricata, Hitchcock já colocava em prática esse conceito em Festim Diabólico, filme de 1948. Claro que de forma mais sutil. Em vez de dar o plano de bandeja para o mocinho, num discurso bem explicativo, impera o humor negro. Insinuações, troca de olhares, linguagem corporal, detalhes do cenário. É assim que Brandon e Phillip dão as dicas do que fizeram. Brincam com a situação. Duas crianças que fizeram "arte" e tentam minimizar. O primeiro mais do que o segundo, pois neste ainda existe um resquício de consciência. Mas, submisso, segue as regras impostas pelo amigo. Já o "herói", o professor Rupert, aparece desvirtuado. É por ele que torcemos para que descubra a trama. Mas ele é também falho. Revela hipocrisia nas suas opiniões e atitudes. Ninguém ali é perfeito. Não há maniqueísmos.
Um fato curioso sobre Festim Diabólico é que ele é mais lembrado pelo enorme desafio técnico do que por essas nuances de seus personagens. É até justificável, já que Hitchcock fez o que seria impensável na época: filmar uma história em "tempo real", com o menor número de tomadas possíveis e mascarar os cortes para dar a impressão de continuidade, como se todo o filme tivesse um único plano-sequência. Empreitada hercúlea, sem dúvida. Mas relativizada pelo próprio Hitchcock, que considerou a ideia absurda, pois "renegava minhas teorias sobre a fragmentação do filme e sobre as potencialidades da montagem para contar visualmente uma história", conforme disse em entrevista a Truffaut.
Mesmo assim, o cineasta se aproveitou da técnica para conferir uma maior carga emocional para a trama, através do movimento dos atores pela sala e a tensão crescente cada vez que um deles chegava perto do baú (um personagem por si só), e torná-la mais intimista, já que, a medida que a projeção avança, os closes e detalhes, como o da arma do crime (uma corda) usada para amarrar livros, nos jogam no centro do arco dramático e nos transformam em cúmplices do assassinato, causando um óbvio desconforto. Além disso, foi o primeiro filme em cores de Hitchcock, o que só aumentou o caráter experimental do longa-metragem, que, por exemplo, buscou soluções para compor um pôr-do-sol razoavelmente crível pela janela do apartamento.
Classificado por seu criador como uma "experiência perdoável", Festim Diabólico não só é perdoável como também é um dos melhores filmes de Hitchcock, justamente por seu princípio de desconstrução. Se o cinema descobriu a eficácia da montagem e dela se utilizou para aprimorar a sua narrativa e linguagem, fundamentando-se como arte, Hitchcock mostrou que era possível encontrar alternativas a esse modelo sem cair na armadilha de tornar a produção uma peça de teatro filmada. Coisa de mestre.
Cena de abertura do filme
4 comentários:
Talvez a falha maior de 'Rope' esteja justamente num ponto fundamental do roteiro original britânico e q foi apenas "sugerido" no roteiro adaptado pro cinema: a homossexualidade de seus 3 protagonistas. Coisas de cinema americano daquele tempo... Além disso, James Stewart, em que pese todo seu talento já consagrado, não está tão à vontade no papel. Outra escolha poderia ter sido mais acertada. Tais aspectos, evidentemente, não tiraram o brilho da pelicula que é, sem dúvida, um de meus filmes favoritos.
Não acho que a homossexualidade dos personagens seja relevante para a história. Acredito até que se HItchcock tivesse investido nesse caminho, o filme desviaria o seu foco e teríamos discussões sobre se o filme é ou não preconceituoso. Acho que não é por aí.
Já James Stewart não era a primeira opção do diretor, que queria o Cary Grant. Mas Festim Diabólico teve o crédito de iniciar essa parceria. Já vale por isso.
Abs.
Não concordo. O filme é brilhante, tanto pelo roteiro quanto pelos pouquíssimos cortes e como fazia Hitchcock para "driblar" as limitações do tamanho do rolo, entre outras coisas; no entanto, a questão da homossexualidade era fundamental, pois para os três homens, adeptos da filosofia nietzscheana, que se diziam estar em um estágio intelectual em que transcendem a ética e moral, nada seria mais íntegro do que se fossem homossexuais, de maneira a transcederem a ética heterossexual predominante na sociedade.
É uma leitura interessante. Totalmente válida. Mas continuo com meu ponto de vista. O personagem do Stewart diz assim ao final: "que a sociedade julgue vocês". Pra mim, essa frase é simbólica e tem referência direta à censura que sofreu por esse tema. Ou seja, a discussão sobre o homossexualismo não foi invalidada e o filme ainda ganhou um tom crítico. Mas, de novo, essa é a minha visão. O bom do cinema é que ele permite variadas leituras. Abs.
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