terça-feira, 26 de novembro de 2013

Terriers (2010)








Terriers é uma dessas séries perdidas por aí, que a gente acaba descobrindo por acaso pela internet (no caso específico, no Netflix). Cancelada pelo FX após apenas uma temporada, a série poderia ter ganhado vida mais longa. Afinal, tinha muito ainda que explorar na amizade de dois detetives particulares fracassados: um ex-policial alcoólatra e abandonado pela esposa e um ex-ladrão barato que tem uma personalidade quase infantil. 

A questão é que a dupla é fascinante, graças ao ótimo timing cômico e entrosamento dos atores Donal Logue e Michael Raymond James. Ao longo da temporada, eles resolvem pequenos crimes com soluções divertidas e diferentes em uma cidade litorânea dos EUA. Mas, existe um plot maior que envolve assassinatos, traições, especulações imobiliárias e conspirações políticas ao longo da temporada. 

A trilha da série é ótima, a trama flui de maneira eficiente e conhecemos um pouco mais de como surgiu a insólita amizade ao longo dos 13 episódios. Nenhum deles é cansativo, pois os roteiros possuem ótimas referências em outras histórias e reviravoltas interessantes. Assistam. 



sexta-feira, 22 de novembro de 2013

À meia-noite levarei sua alma - A síntese do horror no Brasil

Deitado na grama úmida, ele podia enxergar a noite de céu estrelado que se desnudava entre os galhos das árvores, emprestando um ar soturno à cena, como as vistas nos clássicos filmes de terror dos anos de 1930, do Drácula de Lugosi ao Frankenstein de Karloff. Demorou um pouco a perceber que não conseguia fazer movimento algum. E tal percepção veio quase simultaneamente à noção de que não estava só. Um vulto na escuridão o acompanhava. Tentou falar, gritar, se levantar, porém, de nada adiantou. Só exauriu ainda mais as suas já debilitadas forças. Quando as sombras se dissiparam, a visão tornou-se demais aterradora. O cenário era um cemitério e, à sua frente, estava ele próprio, mas com sutis e fundamentais diferenças, como a indumentária preta dos coveiros e os olhos, ah, os olhos... O demônio ali habitava e partiu para cima dele. Arrastou-o pelos braços entre sepulturas e o jogou dentro de uma cova cuja inscrição na lápide não deixava dúvidas: “José Mojica Marins”.
Quando acordou, em pânico e empapado de suor, Mojica levou algum tempo para assimilar a experiência e todo o simbolismo nela contida. Não foi um mero pesadelo. E sim um parto. A celebração de uma nova vida, mas também da sua morte. Naquela madrugada gélida de 1963, nascia Zé do Caixão, o personagem que o definiria para sempre. As imagens macabras com as quais sonhara eram claras agora: era o destino da criatura subjugar o criador e tomar definitivamente o seu lugar no imaginário popular a partir da produção de “À meia-noite levarei sua alma”.
O caminho para a ascensão de Zé do Caixão era árduo. Mojica, que acumulava fracassos em suas empreitadas cinematográficas até então - embora no seu amadorismo já transparecesse certa aptidão para o ofício -, teria que convencer as pessoas à sua volta a bancar um filme sobre o delírio febril que teve durante o sono. Um filme de terror. Ninguém no Brasil ousava fazer produções do gênero. Vendeu cotas, reuniu o esforço dos alunos da sua escola de cinema e interpretação (que havia montado anos antes justamente para viabilizar as suas ideias como cineasta), pegou dinheiro com os pais, saiu de casa brigado com a mulher, vendeu os móveis... Enfim, conseguiu o necessário para dar vida a Zé do Caixão.
Curiosamente, não era Mojica quem faria o personagem nas telas. No entanto, o ator Dráusio de Oliveira deu pra trás quando soube que iria ter que segurar uma aranha caranguejeira de verdade nas filmagens. Mojica fez testes, mas ninguém o convencia. Não eram assustadores o suficiente. Só ele sabia o terror que tinha vivenciado, então tomou a decisão de interpretar ele mesmo o Zé do Caixão. O coveiro, pelas suas mãos, ganhou cartola, capa e unhas postiças. O último aspecto era a voz. Mojica não usaria som direto no filme e todos teriam que ser dublados. O problema é que Mojica tinha um português ruim e uma das características do personagem era o uso do seu intelecto para transmitir um ar de superioridade em relação aos matutos. O que foi resolvido com a entrada de Laercio Laurelli como a sua voz oficial.
Durante as filmagens, Mojica era tratado como maluco pela equipe técnica e outras pessoas do meio cinematográfico de São Paulo, pois subvertia fórmulas consagradas e tidas como o jeito certo de fazer cinema: não gostava de imagens estáticas e usava a câmera na mão, atuava olhando para o espectador, além de usar a criatividade para driblar a escassez de recursos, seja em movimentos de câmeras elegantes e elaborados seja na aposta em uma fotografia escura e pesada, pouco usual na época.
Quando ficou pronto, Mojica correu a cidade inteira atrás de alguém que aceitasse passar “À meia-noite levarei sua alma” nos cinemas, mas nada. Ninguém se interessava. Demorou quase um ano e muitas provações pessoais e familiares para que Mojica encontrasse o distribuidor baiano Milton Silva, que tinha o controle de boa parte das salas no Nordeste. Ele assistiu ao filme e comprou a parte de Mojica e de todos os cotistas. A partir daí, “À meia-noite levarei sua alma” fez história. Para o bem ou para o mal. Uns amaram, outros odiaram. E é assim até hoje. Zé do Caixão ganhou vida própria após diversos outros filmes e programas de televisão. Transcendeu o seu criador. Gênio, louco, mestre do cinema, um amador que se apoiou na figura exótica, no folclore... Reverenciado no exterior, execrado na sua terra. Todos sabem quem é Zé do Caixão, poucos viram os seus filmes. É nessa dicotomia que José Mojica Marins vive desde aquele pesadelo, bendito ou maldito, há exatos 50 anos.

Simplicidade e genialidade lado a lado

“À meia-noite levarei sua alma” é pobre em orçamento, mas rico em sutilezas e detalhes que o transformam em um dos maiores clássicos do cinema brasileiro. A trajetória de Josefel Zanatas, nome de batismo de Zé do Caixão, incomoda, fere princípios. Ele zomba de Deus, dos mortos, dos oprimidos. É um pária por opção. Não se mistura, se julga superior. E é amedrontador justamente no sentido de que confia em si mesmo e em mais ninguém. Um individualismo expresso em planos e enquadramentos que o colocam acima do povo, preso em sua ignorância e crendices.
Com uma história forte, a parte técnica, que seria um calcanhar de Aquiles, se sobressai positivamente. A já citada fotografia possui um tom fantasmagórico, com um ar expressionista de se contemplar admirado. E a montagem é dinâmica, casa de forma perfeita com o roteiro. Ação e reação. É assim que o filme se desenrola. Uma cena, em especial, dá uma noção da inventividade e apuro técnico de Mojica no uso da profundidade de campo: Zé do Caixão come um carneiro e ri em frente à janela enquanto vê a procissão de Sexta-Feira Santa passar. Além do plano-sequência em que Zé conclama os mortos a virem buscar sua alma. Um primor.
Fora isso, a clara inspiração de Mojica em seriados norte-americanos e histórias em quadrinhos, empresta uma jovialidade ao filme e um frescor de novidade que faltava no cinema nacional. Assim, a cena inicial, da velha bruxa avisando aos espectadores para não assistirem à produção é impecável na função de criar intimidade e nos inserir na história. Já os closes nos olhos do antagonista - que se transformam, tomados pela ira - sempre que um ato de violência extrema está prestes a acontecer provoca o suspense de forma bastante eficaz. E é assim, com amor ao cinema e muita criatividade para superar a precariedade financeira, que Mojica trabalha há mais de 50 anos no ramo, sem o reconhecimento merecido como um dos maiores mestres do cinema de horror. E tudo começou com “À meia-noite levarei sua alma”, um filme que sintetiza a história do gênero no Brasil.